quarta-feira, 27 de outubro de 2010
O locutor "Dez reais"
Ele é versátil. Dança na porta da loja, microfone na mão, passinhos para cá, para lá, mas ninguém vê. Os vendedores estão ocupados enquanto clientes entram e saem sem notar aquele sujeito com voz empostada, começando as frases sempre com “Muito bem”, ou “É isso aí”.Entre imitações do Silvio Santos e uma ou outra piadinha, ele repete promoções, fala sobre “ofertas incríveis” e valoriza que o celular está barato.
Do outro lado da rua um carro de som não deixa duvidas: “Auto escola “Y” a mais barata!”. O volume está tão alto que até a Dona Carmem que mora no décimo andar do edifício da esquina perdeu o fim da receita da Ana Maria Braga na TV. “Que povo mal educado!” Ela resmunga. “Será que ninguém tem mais direito a sossego?”.
O que Dona Carmem não sabe é que, seja na porta de loja, no carro de som, no super mercado ou mesmo nas rádios, eles estão lá: O locutor dez reais.
Essa espécie, cada vez menos rara, sobrevive às custas de um volume de trabalho que justifica o baixo preço. Com a possibilidade de qualquer um acoplar um microfone no computador, baixar um software e sair gravando, criou-se um novo mercado nivelado completamente por baixo.
Os argumentos são muitos: “Se não for assim o cliente não aceita”, “Tem muita concorrência”, “Esse mercado é pequeno”,“Eu ganho no volume”, e por aí vai, sempre criando uma falsa sensação de que não há remédio, que esse é o valor correto e pronto.
Tem também o “locutor genérico”, que vive de imitações do Jorge Ramos (o do cinema), Dirceu Rabelo (TV Globo) e outras vozes conhecidas, sem ao menos disfarçar sua motivação em “Fazer igual cobrando menos”. Mas quem faz assim, nunca chega aos pés do original que, não a toa, cobra bem mais.
E os “Waguinho´s Cover” que pipocam em todos os lugares, tentando fazer igual ao meu amigo que hoje está na 89 FM/SP, mas obviamente cobrando menos?
Essas espécies não são fenômenos desconectados de uma razão maior. Talvez parte da explicação esteja no próprio rádio que continua se desvalorizando como veículo, perdendo espaço, permitindo a perda de anunciantes até para panfletos publicitários.
É assim porque perdemos o foco. Nós esquecemos que trabalhamos com a possibilidade de criar mundos na cabeça do ouvinte, de explorarmos sua imaginação, de adaptarmos nossa linguagem aos seus anseios, suas vontades, suas projeções. O rádio virou burocrático, os departamentos artístico e comercial falam línguas opostas, são distantes um do outro, em muitos casos até competem entre si, esquecendo-se que o artístico é o barco, mas o comercial seu motor. Quantas vezes eu vejo diretores artísticos que fazem questão de serem inimigos do comercial, e vice versa.
Se por um lado os financeiros querem sempre diminuir custos (e eles tem suas razões para tal) o artístico bate o pé achando que “sem dinheiro não dá”. Por que não? Talvez seja mais difícil exigir de sua criatividade, driblar as dificuldades com boas idéias e fazer mesmo com pouco investimento. É mais fácil criar com dinheiro, mas é possível criar sem.
O fato é que basicamente vivemos um problema de visão. Nos enxergamos como o patinho feio da comunicação e tocamos nosso negócio sem entusiasmo, sem margem para ousar, sem nenhuma criatividade. Faz-se rádio como se fazia em tempos pré internetianos e tenta-se colher um resultado que desse jeito não virá.
Dizer que os tempos estão mudados e que precisamos de conteúdo, não é suficiente se você não agir conforme discursa. Rádios colocam conteúdos no ar somente com o argumento de que se “A rádio tal fez, é porque deve ser bom”. (Você nem imagina quantas vezes já ouvi coisas assim!).
Enquanto isso, eles, os “locutores dez reais” pipocam para todos os lados, desvalorizando o mercado e, de certa forma, ocupando essa brecha que o rádio abriu com sua falta de visão, com seu método de gerir baseado na implosão.
É claro que isso não é somente um fenômeno mercadológio. Sei que as novas tecnologias mudam o jeito de conduzir qualquer negócio e que o acesso a um “home estúdio” facilitou as coisas, mas não da para olhar para o fulano da loja com voz de Silvio Santos cover, nem o “locutor dez reais” como algo desconectado da nossa realidade, da nossa falta de visão e identificarmos nisso tudo reflexos da maneira como estamos levando nosso negócio.
A culpa é nossa também e, enquanto não fizermos nada, iremos conviver com um cenário cada fez mais “prostituído” e desvalorizado.
Pense nisso e faça sua parte.
Este artigo é de autoria do radialista Flávio Siqueira e foi extraído do Site
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